CRÍTICA PUBLICADA NA ÉPOCA DO LANÇAMENTO DE “COISA PÚBLICA” NOS CINEMAS.

O FILME CHEGA À PLATAFORMAS NO DIA 14 DE MARÇO.

O Filme mais Necessário do Ano

Por: Paulo Rocco @paulorogeriorocco 

Esse deve ser o mais difícil exercício para um crítico de cinema – não que me considere como tal, apenas gosto de dizer que comento filmes com certo conhecimento de causa. E, claro, escrevo esses comentários como se estivesse em uma roda de amigos falando sobre um assunto do qual gosto muito.

Mas por que disse que poderia ser difícil desta vez? Porque escreverei sobre um filme do qual participei da produção. Então façamos um acordo: não falarei sobre a Direção de Arte de “Coisa Pública”, o novo filme de André Borelli.

Borelli é jovem mas seu currículo carrega obras com uma assinatura que já se nota e – com a experiência e seu trabalho incessante – ficará mais nítida a cada produção. Há algumas características que se repetem em seus filmes, no bom sentido, como a angústia dos personagens, o sexo como forma de domínio e uma certa violência – às vezes psicológica, às vezes sutil, às vezes visceral, como na escola Tarantinesca. Mas a pior delas, em minha opinião, é a primeira.

Suas personagens centrais servem como um para-raios dos satélites que giram ao seu redor, sejam eles apenas um, como em “O Tio” e “Descascado” ou uma constelação de personalidades díspares, como no filme que é objeto deste artigo.

E no caso de “Coisa Pública”, os raios – muitos deles – caem sobre Clarice, uma das moradoras da república onde se passa a História (com “H” maiúsculo mesmo e depois vou explicar isso). A personagem central é vivida por Priscila Ubba, que entrega talvez a interpretação mais forte de sua premiada carreira no cinema e na televisão.

Como tudo na casa, – um velho sobrado onde moram sete pessoas – principalmente na primeira parte, as coisas parecem em ordem. Há uma normalidade aparente onde três homens e três mulheres convivem da melhor maneira possível. Ou, pelo menos, até onde as máscaras permitam esse cotidiano.

Clarice namora o filho número um do dono da república, Beto, um cara aparentemente normal, com pequenas alterações de humor, mas que esconde dentro de si uma verdade que, nos tempos de hoje, aflora com aval da sociedade chamada “de bem”. Bruno Pacheco traz à tona esse homem, o responsável pelo espectador perder umas boas horas de sono após ver o filme.

Ah, verdade, não tinha falado sobre isso. É um filme de terror também. Talvez do pior subgênero dentro deste vasto segmento da sétima arte: o terror silencioso, o que está à espreita. Aquele que Renato Russo talvez tenha muito bem definido como monstros da nossa própria criação. E o olhar de Pacheco contribui muito para essa insônia pós-sessão.

Mas tem outros moradores naquele lugar também. Camila é uma atriz e influencer vivida pela mega influencer Dora Figueiredo. É dela os poucos momentos de humor do filme. A personagem até tenta aliviar um pouco uma tensão latente, mas a república não é para os leves de espírito.

Dora, em sua estreia no cinema, traz consigo o olhar sofrido de uma parcela da população que assiste, da janela ou pela TV, o que acontece realmente dentro daquela casa meio decadente.

Mayara aparenta ser uma boa pessoa. É evangélica e professora de escola infantil. Tenta conviver muito bem com todos os moradores, mesmo que para isso esconda, no armário com portas trancadas, esqueletos que podem emergir a qualquer momento. É por ela que passa uma das cenas mais tensas do filme e – sem sombra de dúvida – uma das mais violentas.

Quem dá vida à essa personagem de várias camadas é Gabriela Mag que, ao contrário de suas personagens em “Sintonia” ou “Todas as Garotas em Mim”, por exemplo; não coloca sua beleza em primeiro lugar. Ela se desconstrói em “Coisa Pública”, mas não deixa de seduzir o espectador, desta vez por conta de sua excelente intepretação. Sua alma carrega o medo da república.

Daniel e Otávio, papéis de Leonardo Silva e Pablo Diego Garcia, respectivamente; são mais discretos dentro daquela casa, pelo menos até o momento em que o primeiro, músico de bar e o segundo, advogado e irmão de Beto, também começam a revelar o outro lado de suas personalidades e vontades retraídas. Máscaras novamente.

E tem um outro detalhe que, aos olhos da sociedade da república, é não mais que isso: um detalhe. E ele tem um nome: Luiz, o personagem de Esdras Saturnino e sétimo morador da casa. E por uma opção do Roteirista e Diretor, ele tem apenas isso: um nome. Não tem um rosto. Dói. É difícil de ver. É o espelho de tempos sombrios.

Mas tudo corre bem. Há uma festa na república. Mais máscaras – que não sobreviverão a um crime que acontece nessa noite, em um cômodo pequeno, sufocante, claustrofóbico. Mas com espaço suficiente para que a história toda recomece.

Não pense que dei spoilers aqui, isso é só o começo de um emaranhado que a mente de Borelli cria para ir revelando aos poucos o que, quase sempre, preferimos deixar na escuridão. Poderíamos assistir como quem vê um filme se Stephen King, com um distanciamento brechtiniano da história, mas é impossível. Estamos todos dentro da república. Somos parte dessa História, explicando a afirmação lá de cima.

É preciso coragem. Para ver. Para comentar. E não por conta da violência milimetricamente desenhada ou de se descobrir parecido com um daqueles moradores, mas porque vivemos tudo aquilo – como Clarice, onde respinga a ação de todos os personagens.

Há participações especiais de atores queridos como Chico Neto, entre outros, – que fez “Quase Livres” com o diretor – e a participação mais que especial de Dan Stulbach, como o dono da coisa toda. Seu personagem, Messias, canaliza toda a hipocrisia da casa em momentos de um terror ao estilo Dario Argento.

Mas não é isso que mais me incomoda no Messias. Durante todo o filme, um quadro com sua foto está na sala, sobre a lareira falsa da república, como a espreitar cada momento que acontece entre aquelas paredes.

“Coisa Pública” teve uma pré-estreia dia 20 de setembro no emblemático Cine Bijou, em São Paulo – símbolo da resistência durante os anos de chumbo – e estreou dia 22 de setembro nos cinemas mais corajosos, como diz o trailer do filme.

E sobre meu trabalho ao lado de uma equipe maravilhosa, não vou fazer nenhuma análise, obviamente. Mas, vou quebrar o acordo proposto nos primeiros parágrafos e fazer um breve comentário.

Segundo as diretrizes sugeridas por André Borelli, desde as cores do filme até os objetos de cena, pensamos em um clima que remetesse aos anos 70, a uma época obscura para essa nossa República.

Então não será difícil você notar ali, por exemplo, um relógio antigo, que presenciou horas difíceis deste país, mas que ainda tem ponteiros precisos. Como a marcar o tempo para o pesadelo terminar, no filme mais necessário do ano.

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